O que leva alguém a confessar um crime que não cometeu? Entenda como o método de investigação pode ser a resposta
Vídeo mostra interrogatórios de Mairlon, Paulo e Leonardo O que leva uma pessoa a confessar um crime que não cometeu? Essa pergunta esteve no centro da defe...

Vídeo mostra interrogatórios de Mairlon, Paulo e Leonardo O que leva uma pessoa a confessar um crime que não cometeu? Essa pergunta esteve no centro da defesa de Francisco Mairlon Barros Aguiar, inocentado nesta semana após passar quase 15 anos preso pelo triplo homicídio da 113 Sul. Em 2010, a condenação do então jovem de 22 anos teve como principal base a confissão feita na delegacia, durante interrogatórios conduzidos sob pressão (veja vídeo acima). Nas entrevistas de Francisco Mairlon, há: mudanças constantes de interrogadores; menções sobre possíveis consequências da prisão; afirmações sobre a família dos acusados; discussões sobre as penas que poderiam receber. “Incluindo a afirmação de que a pena por homicídio seria maior do que a de ‘matar e roubar’. Expressões como ‘você sabe sim por que está aqui’ reforçam o tom de autoridade e o contexto de pressão”, completa a advogada Lívia Moscatelli, mestre em direito penal pela Universidade de Coimbra. Francisco Mairlon durante coletiva de imprensa Reprodução/TV Globo Abordagens coercitivas podem levar o interrogado a ceder e admitir um crime que não cometeu, gerando falsas confissões, segundo Dora Cavalcanti, advogada de Mairlon e fundadora do Innocence Project Brasil. “Muitas pessoas podem ser quebradas sob pressão policial: abatidas, exaustas, desorientadas, privadas do sono, de boa alimentação. Depois de seis horas, a chance de alguém assumir a responsabilidade de um crime que não cometeu, sob a falsa promessa de que vai ser liberado para casa, aumenta exponencialmente”, afirma Dora. O g1 ouviu especialistas para entender como a condução de interrogatórios pode influenciar o curso de investigações policiais e resultar na produção de falsas confissões. Entenda abaixo. Homem preso por 15 anos sai da cadeia depois de STJ anular condenação Interrogatório acusatório Quando um crime é cometido e denunciado, a Polícia Civil dá início a uma investigação. No processo, são coletados depoimentos, provas e informações para identificar o autor. Há diversas formas de coletar cada tipo de prova – e diferentes métodos, por exemplo, para ouvir uma testemunha ou um acusado. Um modelo que ficou bastante famoso, eternizado em séries e filmes hollywoodianos, é o interrogatório acusatório, baseado no Método Reid. Ele surgiu nos Estados Unidos, por volta de 1940. A técnica utiliza manipulação de fatos, persuasão e coerção – e substituiu a tortura física por pressão psicológica, segundo as advogadas Luiza Ferreira e Lívia Moscatelli. Esta abordagem pode levar a erros graves, como falsas confissões, especialmente entre jovens, pessoas com transtornos mentais ou sob efeito de substâncias. "A principal crítica é que o método não busca reconstruir o que realmente aconteceu, mas sim obter uma confissão a qualquer custo, o que compromete a qualidade da investigação e viola direitos fundamentais”, aponta Lívia Moscatelli. E como funciona o método? Entenda abaixo: Entenda como funciona um interrogatório acusatório. Arte/g1 Confronto direto e impositivo: perguntas afirmativas, sugestivas, diretas e rápidas, além de blefes para observar reação do interrogado Sem defesa: o advogado não pode acompanhar a sessão Minimização das consequências da confissão: o interrogador oferece a possibilidade de redução de pena, ou de ser liberado para ver a família Apresentação de alternativas: o agente oferece duas versões do crime (uma mais leve e outra mais grave), e o suspeito tende a escolher a menos condenável Negações interrompidas: o investigador impede negativas e tenta fazer suspeito refletir Retenção da atenção: o interrogador busca manter a atenção ininterrupta do suspeito, se aproxima fisicamente e faz perguntas retóricas Suspeito "de castigo": pessoa é mantida na sala sozinha, privada de sono, alimentação e hidratação e manutenção da entrevista por longos períodos Confissão escrita: uma vez obtida, a confissão é registrada por escrito o quanto antes para evitar retratação No julgamento do caso de Francisco Mairlon no STJ, na última semana, os próprios ministros criticaram a prática de interrogatórios "incisivos" no país. “É um método que permite e incentiva o policial a usar de todo tipo de subterfúgio, estratagemas, incentivos, chantagens e ameaças para obter confissões. [...] E o resultado é um incremento enorme do risco de condenações injustas”, apontou o ministro Rogério Schietti durante o julgamento de Francisco Mairlon. As consequências psicológicas para quem passa por um interrogatório deste tipo, segundo a psicóloga forense Elisa Krüger, podem incluir quadros depressivos e ansiosos. "Depende da estrutura psíquica da pessoa, do motivo pelo qual foi feita a falsa confissão, da natureza do crime, da reação social e da penalidade", aponta a psicóloga. "[A confissão] Envolve percepção de alternativa (continuar negando ou confessar), avaliação de custos/benefícios, influência de estresse, fadiga, sugestões do interrogador, estados afetivos (medo, vergonha, culpa) e capacidades individuais (idade, nível intelectual, saúde mental). Não é apenas 'verdade ou mentira': é produto de interação situacional entre vulnerabilidades do interrogado e táticas do investigador", afirma a psicóloga Elisa Krüger. STJ manda soltar Francisco Mairlon condenado pelo "Crime da 113 Sul" em Brasília Ao g1, o Ministério da Justiça afirmou que não adota e nem recomenda qualquer método específico de interrogatório, inclusive o Método Reid. Segundo a pasta, a formação para policiais na área de entrevistas investigativas é definida por cada estado. No DF, a Polícia Civil destaca que há um curso de "Entrevista e Interrogatório" que tem como bases psicologia, comunicação, neurociência, criminologia, direito processual penal e direitos humanos. Em relação à entrevista acusatória, a polícia afirmou que as técnicas ensinadas na corporação buscam a eliminação de qualquer forma de coerção. Confissão como a “rainha das provas” no Brasil Casos como o de Francisco Mairlon Barros Aguiar, em que pessoas são condenadas por falsas confissões, não são uma exceção no sistema criminal brasileiro. 📌 Em 80% das investigações policiais em Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife e Belo Horizonte, a confissão foi o mecanismo que direcionou a descoberta da autoria dos fatos. O dado é da pesquisa “O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica”, de 2010, de Michel Misse, referência no campo da sociologia criminal. Ou seja, no Brasil, a confissão continua sendo tratada como uma prova de peso desproporcional e é considerada a “rainha das provas”, tanto na fase investigativa como na judicial. O termo é usado pela advogada Luiza Ferreira, do Innocence Project. “A rainha das provas, a confissão, estimula a autoridade policial a adotar um caminho mais fácil que é a conclusão da investigação ao apontar o autor de um crime. [...] Como pode privilegiar um depoimento testemunhal a uma prova técnica? [...] A prova técnica é imbatível”, diz a advogada. O sistema criminal brasileiro tem tratado os depoimentos orais como suficientes para realizar condenações, aponta o ministro do STJ Rogério Schietti. Ele afirma que a justiça criminal brasileira vem usando de meios viciados de obtenção de provas, posicionando a confissão como a mais importante. "Há uma verdadeira obsessão pelas confissões. E em nome da confissão, muitas vezes, se usam de expedientes que fogem de qualquer conceito de civilidade de um devido processo legal", aponta o ministro. Ao usar apenas a confissão feita em investigação policial como base para a condenação, são violados: Artigo 155 do Código do Processo Penal: o juiz não pode basear sua decisão apenas nos elementos colhidos durante a investigação policial, como depoimentos. Artigo 197 do Código do Processo Penal: a confissão não é prova absoluta, ou seja, ela não pode ser usada isoladamente para condenar o réu. O juiz precisa verificar se ela faz sentido e se há compatibilidade com outras provas do processo. Artigo 5º da Constituição Federal: um dos pontos do texto é o direito ao contraditório e à ampla defesa. Ou seja, em qualquer processo judicial ou administrativo, os envolvidos têm o direito de conhecer as acusações contra si, apresentar sua versão dos fatos, produzir provas e utilizar todos os meios legais para se defender. Já para o Ministério Público do DF, que avalia recorrer da decisão do STJ sobre o caso de Francisco Mairlon, os depoimentos são válidos e respeitaram a legislação brasileira. Segundo o MP, a confissão de Francisco Mairlon foi integralmente registrada em áudio e vídeo, com acompanhamento de profissional regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), garantindo o pleno exercício do direito à ampla defesa. "Não foi constatada qualquer violação à integridade física ou psicológica do investigado pelos agentes públicos responsáveis pela condução do procedimento", diz o órgão. Questionados sobre dados de reversão de condenações baseadas em falsas confissões, tanto o Ministério da Justiça como o Conselho Nacional de Justiça e a Defensoria Pública do DF afirmaram não ter dados sobre o assunto. Nos Estados Unidos, o National Registry of Exonerations (Registro Nacional de Exonerações) é o responsável por esse levantamento. Segundo banco de dados, em 2024, foram 147 reversões de condenações nos EUA, com uma média de 13 anos de detenção. Destas, 22 envolveram confissões falsas. Como evitar erros policiais e jurídicos? Tipos de interrogatório. Arte/g1 Os especialistas entrevistados apontam alternativas para evitar interrogatórios acusatórios, falsas confissões e condenações apenas com base em depoimentos. O primeiro passo é a regulamentação de um método de interrogatório, ou seja, de como tomar depoimentos éticos e eficazes. O foco é obter dados confiáveis de forma ética e não repressiva. Ao g1, especialistas explicaram que há três diretrizes internacionais de entrevista focadas em substituir métodos coercitivos por técnicas que respeitam os direitos humanos e a ética: Peace: criado no Reino Unido, define seis etapas de estruturas para entrevistas investigativas, inclui planejamento cuidadoso, construção de confiança, relato livre, esclarecimento de informações, encerramento respeitoso e avaliação crítica. Princípios Méndez: publicados em 2021 pela Organização das Nações Unidas, abrangem fundamentos teóricos, práticas não violentas, proteção de grupos vulneráveis, treinamento especializado, responsabilização institucional e implementação estatal. Rapport: método consiste em estabelecer uma relação de confiança e respeito com o suspeito para facilitar a obtenção de informações. É um relacionamento positivo, de atenção mútua e livre de julgamento entre o entrevistado e o entrevistador. Veja abaixo como deve ser um interrogatório segundo diretrizes internacionais da ONU: Entenda como são feitos interrogatórios eficazes para coleta de informações. Arte/g1 A advogada Luiza Ferreira defende que é preciso entender a realidade brasileira e desenvolver, junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), um método para o país. Para que casos como o de Francisco Mairlon não se repitam, a advogada aponta um princípio jurídico fundamental que deve ser respeitado desde o início da investigação policial até o fim do julgamento: a presunção de inocência. “Por mais grave que seja o crime, e mesmo que a pessoa seja culpada, é preciso tratá-la como inocente. A gente trata todo mundo como se fosse culpado e é preciso inverter esse método”, afirma Luiza. Leia mais notícias sobre a região no g1 DF.